Cannabis medicinal no Brasil: marcos legais e avanços na regulamentação
- Emsí
- 27 de fev.
- 6 min de leitura
Cannabis medicinal no Brasil: marcos legais e avanços na regulamentação

Introdução:
O cenário legal da cannabis medicinal no Brasil vem evoluindo rapidamente. Em meio a debates públicos e pressão de pacientes, o país tem registrado marcos importantes – da autorização de importação de derivados de cannabis em casos excepcionais até normativas específicas da Anvisa e decisões judiciais que prometem revolucionar o setor. Neste post, trazemos um panorama completo e acessível sobre os principais marcos legais e avanços na regulamentação da cannabis medicinal no Brasil, equilibrando detalhes técnicos com uma linguagem clara.
Desde 2006, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) já previu a possibilidade do uso medicinal da maconha, mas faltavam regulamentações práticas para viabilizar esse acesso . Na ausência de regras claras, famílias e pacientes recorreram à Justiça para conseguir tratamentos, impulsionando mudanças graduais. Abaixo, listamos os principais marcos dessa evolução legal:
• 2014 – Uso compassivo autorizado: O Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece, em caráter compassivo, o uso do canabidiol (CBD) para epilepsias refratárias. Começam as primeiras autorizações judiciais para importação de óleos de CBD por pacientes, dado o insucesso de tratamentos convencionais.
• 2015 – Reclassificação do CBD pela Anvisa: Sob pressão social e evidências científicas, a Anvisa reclassifica o CBD como substância controlada (não mais proibida). Também edita normas (como a RDC nº 17/2015) que permitem a importação excepcional de produtos à base de canabidiol, mediante prescrição médica e laudo, especialmente se o produto tiver teor baixo de THC . Essa medida abriu caminho para milhares de pacientes importarem medicamentos à base de cannabis.
• 2017 – Primeiro medicamento registrado: A Anvisa registra o primeiro medicamento à base de cannabis no Brasil, o Mevatyl (nome comercial do spray bucal de THC/CBD conhecido como Sativex). Indicado para espasticidade moderada a grave em esclerose múltipla, o Mevatyl passou por todos os testes clínicos exigidos e obteve registro em janeiro de 2017 . Foi um passo importante, embora seu custo elevado (~R$2 mil) limitasse o acesso .
• 2019 – Marco regulatório da Anvisa (RDC 327): A Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprova a RDC nº 327/2019, criando uma categoria especial de “produtos de cannabis” para fins medicinais. Essa resolução regulamenta a fabricação, importação, comercialização e prescrição de derivados da cannabis, sob controle da Anvisa . Com isso, produtos com diferentes proporções de CBD e THC puderam ser importados e até vendidos em farmácias, mediante receita médica de controle especial . Importante: a RDC 327/2019 não autorizou o cultivo da planta em território nacional – os insumos continuaram sendo importados, e os produtos recebiam apenas uma autorização sanitária temporária (5 anos), em vez de registro definitivo .
• 2020-2021 – Debate sobre cultivo e projeto de lei: Em 2020, a Anvisa chegou a discutir uma proposta para permitir cultivo controlado por empresas, mas o tema enfrentou resistência e não avançou naquele momento. Paralelamente, tramitava no Congresso o PL 399/2015, propondo regulamentar toda a cadeia da cannabis medicinal (cultivo, produção, comercialização e uso industrial do cânhamo) . Em 2021, esse projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados, evidenciando apoio político à causa, porém ainda aguarda votação no Senado Federal e enfrentava controvérsias.
• 2021-2022 – Novas normas e expansão do acesso: A Anvisa publicou atualizações como a RDC 335/2020, facilitando a importação por pessoa física de derivados de cannabis com prescrição médica . Em 2022, a agência editou a RDC 660/2022, consolidando regras para registro e fiscalização desses produtos (substituindo parcialmente a RDC 327) e simplificando a importação direta por pacientes mediante laudo e receita . Também em 2022, houve autorização pontual para cultivo de cannabis para pesquisa científica em universidades federais (UFRN e UFSC) , indicando maior abertura das autoridades para estudo da planta.
• 2023 – Crescimento das autorizações judiciais: Diante do alto custo dos produtos importados, muitos pacientes buscaram na Justiça o direito de autocultivar cannabis para uso medicinal. Diversas decisões judiciais favoráveis emergiram pelo país, concedendo habeas corpus preventivos para cultivo doméstico a pacientes e associações, embora sem uma lei federal unificada sobre o tema. Esse movimento reforçou a pressão por uma regulamentação mais abrangente.
• 2024 – Decisões históricas do STF e STJ: O ano de 2024 trouxe avanços notáveis. Em junho/2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal até determinados limites (até 40g de flor seca ou 6 plantas fêmeas cultivadas), passando a tratar nesses casos como infração administrativa, não crime . Já em novembro/2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão marcante autorizando o cultivo de cannabis com baixo teor de THC (cânhamo industrial) no Brasil para fins medicinais e industriais . Além de liberar esse cultivo para empresas licenciadas, o STJ determinou que a Anvisa estabeleça em até 6 meses normas claras para o plantio e produção nacional de cannabis medicinal . Essa decisão vincula as instâncias inferiores e corrige uma lacuna normativa, potencialmente abrindo caminho para a produção nacional de derivados e reduzindo a dependência de importados.
O que muda com o veredicto do STJ? A autorização do cânhamo medicinal pelo STJ é considerada um divisor de águas. Até então, a falta de regulamentação para cultivo era apontada como obstáculo ao direito à saúde. Com a ordem para a Anvisa normatizar o plantio, espera-se o desenvolvimento de novos produtos e o fortalecimento do mercado nacional de cannabis medicinal . Empresas brasileiras poderão cultivar e fabricar com mais autonomia, e pacientes podem vislumbrar redução de custos em médio prazo.
Situação Atual da Regulamentação
Atualmente, o Brasil permite o uso medicinal de derivados de cannabis sob prescrição, com produtos disponíveis nas farmácias autorizados pela Anvisa (sob regime de autorização sanitária, não exatamente registrados como medicamentos, exceto o Mevatyl) . A importação direta por pacientes, iniciada em 2014 e simplificada nos anos seguintes, ainda é uma via muito utilizada para itens não disponíveis internamente. Segundo a Anvisa, mais de 200 mil pacientes brasileiros já obtiveram autorizações para importação de produtos à base de cannabis até 2023 – número que vem crescendo com a conscientização médica e popular.
No campo legal, porém, o autocultivo doméstico para uso medicinal ainda não está regulamentado por lei ou norma administrativa. Pacientes sem condições de arcar com produtos comerciais dependem de decisões judiciais caso a caso para poderem plantar sua própria medicina. Associações de pacientes vêm atuando para suprir essa lacuna, produzindo óleos e extratos para seus associados amparadas por liminares judiciais.
Em síntese, vivemos um momento de transição: a base legal existe e se aprimora, mas a regulamentação completa – especialmente no que tange à produção nacional e democratização do acesso – está em pleno desenvolvimento. A decisão do STJ em 2024 e o possível avanço de legislações no Congresso (como o PL 399/2015 no Senado) indicam que mudanças significativas podem ocorrer em breve.
Avanços já consolidados incluem: a possibilidade de comprar em farmácias produtos de cannabis aprovados pela Anvisa (sob prescrição de médicos habilitados), a importação facilitada para pacientes com necessidades comprovadas, e o registro do primeiro medicamento (Mevatyl). Todos esses marcos ampliaram o acesso terapêutico de forma controlada e segura, dentro dos parâmetros de qualidade exigidos pela agência reguladora.
Por outro lado, desafios remanescentes ainda exigem ação. A falta de cultivo nacional regulamentado até o momento encarece os produtos e limita pesquisas locais. Há também desinformação e preconceito entre parte dos profissionais de saúde e da população, fruto de décadas de proibição estrita. Organismos como a Anvisa e o Ministério da Saúde precisam agora trabalhar em conjunto para criar regras claras que viabilizem a produção nacional sem comprometer a segurança, garantindo que a cannabis medicinal seja tratada como o assunto de saúde pública que é.
O progresso no Brasil tem sido notável, mas harmonizar a nova regulamentação com órgãos de saúde, justiça e segurança será crucial. A experiência de outros países mostra a importância de alinhar critérios de qualidade internacionais, promover educação para profissionais de saúde e combater o estigma associado à cannabis . Somente assim os marcos legais se traduzirão em benefícios concretos: tratamentos eficazes acessíveis a quem precisa e um ambiente de pesquisa e inovação florescente.
Descrição da imagem: Frasco de óleo de cannabis medicinal com conta-gotas, representando produto terapêutico derivado da planta. Alt Text: Frasco de medicamento à base de cannabis com conta-gotas, sobre uma mesa, ilustrando a regulamentação de produtos de cannabis no Brasil.
Conclusão:
Os últimos anos delinearam uma trajetória de abertura regulatória para a cannabis medicinal no Brasil – de um passado de proibição total para um presente em que já é possível tratar diversas doenças com derivados da planta, ainda que sob condições específicas. Cada marco legal conquistado – resoluções da Anvisa, decisões judiciais pioneiras, projetos de lei debatidos – representa uma vitória para pacientes em busca de alívio e qualidade de vida. Os avanços na regulamentação têm ocorrido passo a passo, equilibrando prudência e urgência. Resta agora consolidar esse progresso, elaborando políticas inclusivas que garantam acesso amplo e seguro aos tratamentos, fomentem a pesquisa científica nacional e estruturem uma cadeia produtiva sustentável. Dessa forma, o Brasil poderá transformar o potencial terapêutico da cannabis em realidade palpável para milhares de pessoas, dentro de um arcabouço legal claro e eficiente.
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