Desafios atuais e perspectivas futuras para a cannabis medicinal no Brasil
- Emsí
- 27 de fev.
- 6 min de leitura

Introdução: Nos últimos anos, a pauta da cannabis medicinal no Brasil avançou consideravelmente, com mais pacientes tendo acesso a tratamentos e maior discussão pública sobre o tema. Entretanto, ainda persistem diversos desafios atuais que limitam o alcance dessa terapia e impedem que ela beneficie a todos que precisam. Ao mesmo tempo, existem perspectivas futuras promissoras – em termos de mudanças legais, políticas de saúde e desenvolvimento científico – que podem transformar o cenário nos próximos anos. Neste artigo, examinamos os principais obstáculos em vigor hoje e o que se vislumbra no horizonte para a cannabis medicinal no Brasil.
Desafios atuais
Mesmo com a regulamentação parcial pela Anvisa e os casos de sucesso no uso terapêutico da cannabis, uma série de problemas e lacunas ainda dificulta a plena incorporação da cannabis medicinal na saúde brasileira. Entre os desafios atuais, destacam-se:
1. Legislação incompleta e insegurança jurídica
O Brasil ainda não conta com uma lei federal abrangente que trate da cannabis medicinal de forma completa. As normas em vigor se apoiam principalmente em resoluções da Anvisa (como a RDC 327/2019) e em decisões judiciais pontuais. Essa ausência de um marco legal claro gera insegurança jurídica tanto para pacientes quanto para empresas e profissionais de saúde. Por exemplo, embora pacientes possam importar produtos ou obtê-los via autorização da Anvisa, o cultivo comercial da planta para fins medicinais segue proibido pela atual Lei de Drogas, exceto em casos autorizados judicialmente. Isso significa que qualquer iniciativa de produção nacional em larga escala fica barrada, e dificulta até pesquisas científicas com a planta.
Muitos aspectos ficam em uma zona cinzenta jurídica. Associações de pacientes funcionam graças a liminares judiciais, e pacientes que optam pelo autocultivo dependem de salvo-condutos judiciais para não serem criminalizados. Essa falta de segurança jurídica cria um ambiente de judicialização: em vez de terem seus direitos garantidos por lei, inúmeras famílias precisam recorrer à Justiça para obter medicamentos, custeio ou permissão de cultivo.
2. Resistência política e regulamentação travada
Apesar do avanço do debate, há ainda significativa resistência política à ampliação das políticas de cannabis medicinal. Setores mais conservadores do Congresso Nacional – incluindo bancadas religiosas e figuras alinhadas a um discurso antidrogas estrito – bloqueiam propostas de lei que visam facilitar o acesso. O Projeto de Lei 399/2015, que propõe regulamentar o cultivo de cannabis para fins medicinais e industriais no Brasil, foi aprovado em 2021 em comissão especial na Câmara, mas não chegou a ser votado em plenário devido à forte oposição de parlamentares conservadores.
Até pouco tempo atrás, o Poder Executivo também se opunha a flexibilizações, criando um ambiente pouco propício a investimentos no setor. Em 2023, porém, o Ministério da Justiça emitiu parecer favorável à liberação do cultivo medicinal, sinalizando mudança de postura no governo federal. Mesmo com esse avanço, convertê-lo em ações concretas(leis ou novos decretos) ainda enfrenta muita resistência.
3. Acesso restrito e desigualdade de tratamento
Outro desafio evidente é que o acesso à cannabis medicinal permanece restrito a poucos pacientes. Os medicamentos disponíveis legalmente têm custo muito alto e quase não há oferta pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tornando o tratamento praticamente um privilégio de quem pode pagar ou consegue decisão judicial. É preciso reduzir custos (por exemplo, viabilizando produção nacional) e incorporar a cannabis medicinal nas políticas públicas de saúde para ampliar o acesso de forma equitativa.
4. Dificuldades na pesquisa e na formação profissional
Apesar do grande interesse científico na cannabis medicinal globalmente, no Brasil a pesquisa científica sobre o tema ainda enfrenta barreiras. Pesquisadores que desejam estudar canabinoides ou realizar ensaios clínicos com cannabis enfrentam entraves burocráticos rigorosos para obter amostras, cultivar plantas para estudo ou conduzir testes com pacientes, devido às barreiras legais e à falta de incentivos. Como consequência, o país depende em grande parte de estudos internacionais, o que limita a geração de conhecimento próprio e o desenvolvimento de medicamentos nacionais.
Ligado a isso, há também lacunas na formação profissional. A maioria dos médicos, farmacêuticos e outros profissionais de saúde não recebeu conteúdo sobre cannabis medicinal em sua educação formal. Os avanços em conhecimento têm vindo de iniciativas isoladas e cursos de atualização oferecidos por entidades especializadas. Esse déficit de formação resulta em um corpo médico inseguro para prescrever, e muitos pacientes têm dificuldade em encontrar profissionais que orientem o tratamento com cannabis. Sem um investimento maior em educação (por exemplo, incluir o tema nos currículos médicos), esse cenário deve mudar apenas lentamente.
Perspectivas futuras
Apesar dos desafios expressivos, o cenário da cannabis medicinal no Brasil apresenta perspectivas animadoras para o futuro. Diversos sinais apontam para uma evolução positiva nos próximos anos, tanto no campo legal quanto no científico e social. Eis algumas tendências e possibilidades no horizonte:
1. Possíveis avanços legislativos
Há expectativa de que o Congresso Nacional volte a discutir e aprovar propostas sobre cannabis medicinal. O PL 399/2015, se destravado, poderia permitir a empresas brasileiras cultivarem cannabis para fins medicinais sob regulação estrita, assim como produzirem medicamentos e produtos derivados internamente. Isso representaria um salto enorme, pois instauraria uma base legal sólida e diminuiria a dependência exclusiva de importações. Novos projetos de lei também podem surgir (inclusive para autorizar o cultivo caseiro por pacientes). Com o cenário político evoluindo e a mobilização da sociedade civil, há oportunidade para mudanças legislativas significativas.
2. Decisões judiciais paradigmáticas
O Judiciário brasileiro tem desempenhado um papel relevante na questão e deve continuar influenciando o futuro. Nos próximos anos, decisões em cortes superiores podem consolidar entendimentos. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar se farmácias de manipulação podem preparar medicamentos à base de cannabis – uma decisão favorável abriria um novo canal de acesso, além das indústrias farmacêuticas.
Além disso, o próprio STF pode vir a se debruçar sobre o tema do autocultivo para uso medicinal em algum momento, dado o volume de habeas corpus concedidos nas instâncias inferiores. Uma eventual decisão favorável uniformizaria o entendimento em todo o país e daria mais segurança a pacientes cultivadores. Enquanto as leis não avançam, a continuidade da judicialização pode aumentar a pressão por uma solução jurídica mais ampla ou mesmo forçar o Congresso a legislar sobre o tema.
3. Desenvolvimento da indústria nacional e redução de custos
Com a possibilidade de mudanças regulatórias, vislumbra-se o nascimento de uma indústria nacional de cannabis medicinal. Empresas farmacêuticas, startups de biotecnologia e cooperativas agrícolas poderiam, sob autorização, cultivar cannabis em território brasileiro e processá-la em medicamentos, óleos, cápsulas e outros derivados. Isso teria vários efeitos positivos: aumentaria a oferta de produtos, fomentaria a concorrência (puxando os preços para baixo) e geraria empregos e investimentos em pesquisa no país.
Já existem projetos experimentais de cultivo para pesquisa. Em poucos anos, podemos ter produtos “made in Brazil” de alta qualidade, adaptados às necessidades da nossa população. Com mais players no mercado e produção local, a tendência é que os custos para os pacientes diminuam consideravelmente, tornando o tratamento acessível para muito mais gente.
4. Avanços científicos e reconhecimento médico
A cada ano, novas evidências científicas sobre a eficácia e segurança da cannabis medicinal são publicadas mundialmente, e o Brasil tende a se beneficiar desse avanço do conhecimento. É provável que vejamos mais estudos clínicos nacionaisacontecendo – por exemplo, estudos sobre seu uso em diferentes doenças neurológicas e psiquiátricas. À medida que pesquisadores brasileiros produzirem dados e publicações, isso poderá influenciar as diretrizes de tratamento oficiais e talvez levar órgãos como o Conselho Federal de Medicina a rever restrições vigentes.
Paralelamente, prevê-se um aumento na capacitação de profissionais, com mais cursos treinando médicos no uso da cannabis medicinal. Em breve, é provável que médicos de diversas especialidades passem a encarar a cannabis como ferramenta terapêutica rotineira, sem o receio ou desconhecimento de hoje. Essa maior aceitação médica tende a gerar um efeito cascata – mais prescrições, mais demanda e maior pressão por oferta.
Conclusão: Os desafios atuais em torno da cannabis medicinal no Brasil são significativos, indo desde entraves legais e políticos até questões econômicas. No entanto, as perspectivas futuras indicam uma evolução positiva: existe uma tendência em direção a regulações mais racionais, maior produção local e aceitação mais ampla dessa terapia. Se essas tendências se confirmarem – com novas leis, decisões judiciais progressistas, desenvolvimento industrial e mudança de mentalidade – o Brasil poderá em breve ver a cannabis medicinal plenamente integrada à prática médica e acessível a quem dela necessita, contribuindo para aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida de muitas pessoas.
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